terça-feira, 19 de abril de 2011

NA REALIDADE DA FICÇÃO CAP.I

NA REALIDADE DA FICÇÃO

Parte 1
INTERNA VETERANA

“Escutar não é tudo, ouça bem:
mais que os olhos percebem, você deve ver
pelo outro lado da lua,
outra casa da sua rua,
outra estrada e outro fim...
Algo no lugar do sim que não seja não
Nem que tenha do talvez a escuridão”.

H.Z.

I
A OPOSIÇÃO

QUERIA CRER que era impressão, ou que estava sonhando, ou ainda, que realmente havia enlouquecido. Mas o momento não lhe permitia considerar nenhuma das três hipóteses, ou qualquer outra que porventura insistisse. Aquilo era real, real demais.
Ainda cabisbaixo, olhando o teclado da máquina, viu o enfileirado superior das teclas mudar de cor; esverdeou-se. Em seguida, o outro abaixo, depois o outro, então a escrivaninha. Assustado, percebeu que todo o espaço à sua volta ficara verde.
Boquiaberto e estático ficou, ao se pôr de pé e verificar que a luz verde vinha de um de seus canhões, o qual ele – único ali no quarto – não havia ligado. Seguiu com a cabeça o movimento que o equipamento fez, dirigindo a luz verde ao centro do tapete, no qual era confundida a cor escura do mesmo com o verde claro e nítido produzido pelo efeito da gelatina do canhão de luz.
Não teve tempo de fechar a boca: viu aproximar-se do foco de luz, uma mulher alta e magra que lhe parecera muito familiar. Ela aproximou-se dele, firme, segura e decidida. E, indiferente, completamente indiferente à sua surpresa. Olhando em seus olhos assustados, ela o indagou, certa do que fazia:
- E então, rapaz, onde está o texto?
Era a sua última diretora de teatro! Sim, ele não podia estar enganado. Ele a reconheceria em qualquer lugar, mesmo depois de tantos anos. Ela não teve reação à sua surpresa; aliás, continuou indiferente e sem lhe dar tempo para manifestar-se; dirigiu os olhos à escrivaninha e exclamou:
- Ah, até que enfim! – seguiu à mesa e pegou algumas folhas em branco ao lado da máquina.
- Mas não tem nada escrito aí – apressou-se o escritor.
- Claro que não, rapaz, o espetáculo é mímico, portanto, não exige texto algum – respondeu, despreocupada.
- Mas... E o roteiro? Precisa de um roteiro!
O escritor percebeu que a diretora já não o ouvia. Notara que ela parecia nem vê-lo mais. Agitada, ela voltou ao canto do tapete “examinando” as folhas em branco. O escritor, ao perceber que não era mais ouvido por ela, recebeu um “peteleco” da razão: sua ex-diretora? Sim, não podia ter dúvidas, era ela. Mas... ali? O que fazia ela ali, naquela ilha tão pessoal? Apesar dos anos, ela lhe parecia a mesma de outros tempos. Tempos que lhe fizera feliz, ou que ele próprio se fez feliz. Tanto acreditava, tanto sonhava e tanto criava! Sim... Era a sua diretora que estava ali. E para não confirmar a própria insanidade, fechou o atrito mental assumindo então a imagem da amiga como um holograma.
Mas não descansaria a mente, não assim tão fácil, tão breve o quanto imaginava. Sua surpresa maior deu-se após ouvir o grito exigente dela, que ordenava a alguém que ele não via, do lado oposto ao que ele estava, quieto, observando-a:
- Onde estão os atores? – indagou queixosa – Preciso de um ator e de uma atriz, e depressa!
Seu depressa foi alto e claro e, imediatamente invadiram o tapete um ator e uma atriz. Ambos eram jovens. O ator, com roupa de gala e um certo ar de superioridade, tinha no rosto uma expressão de desdém para com tudo que lhe cercava. A atriz tinha o ar sereno, um olhar meigo e curioso, e um brilho de juventude a contornava como o efeito de uma luz de aurora.
O escritor novamente ficou estático, ao ver se apagar a luz verde que imediatamente foi substituída por luzes coloridas também vindas dos canhões espalhados em seu cenário. Todo o variado mais tornou-se lhe escuro e supérfluo. Também lhe desapareceram os “hologramas” do ator e da diretora. Todo o foco estava voltado à ela, a atriz.
Ele já não podia mais supor que fosse holograma... Definitivamente era ela, linda! Linda como sempre fora! Estava realmente ali, na sua frente. Não havia mudado. Seus cabelos longos e castanhos, sua boca bem desenhada, seus olhos cor de mel. Trajava uma roupa que ele muito viu naqueles tempos. Tempos aqueles em que a via sempre. Uma camiseta simples, de algodão, cor clara e uma bermuda azul, de colégio. Calçava um par de tênis também de cor clara e meias brancas baixas. Toda a sua pele levemente morena parecia-lhe dourada... Seu rosto de expressão jovial apresentava um sorriso encantador. A moça mais bonita que já vira!
Todo aquele encanto que o escritor vivia e parecia não ter fim, foi finalmente quebrado após tão longos segundos. As imagens à sua volta tornaram-se visíveis e reais novamente; assim como o foco único, que esverdeou-se outra vez e abriu mais a luz, iluminando novamente todo o tapete, onde ainda permaneciam a diretora e o ator. Este, ao lado da atriz e ambos frente à diretora. Esta foi a responsável pela ação que quebrou todo o encanto do escritor, ou quase; porque ele ainda podia ver a atriz, embora ela aparentasse não o ver mais. Assim como os outros, que pareciam não notá-lo.
- Por que demoraram tanto? – indagou a diretora ao casal de artistas, chamando, assim, a atenção do escritor – Não sabem que não tolero atraso?
- Eu estava esperando ele – defendeu-se a atriz, com ar de quem assume o erro.
Sua voz chegava aos ouvidos do escritor como uma sinfonia; motivo pelo qual ele não ousava articular palavra, a fim de não interrompê-la.
- Eu estava arrumando o meu cabelo e dando os últimos retoques em meu figurino – argumentou o ator, com sua dicção perfeita.
Só então o escritor o reparou com mais atenção. Era o mesmo que naqueles tempos, tempos de palco, de textos e de alegria, fizera parte daquele grupo. Mais que isso, também mantinha um sentimento um tanto afetuoso pela atriz, assim como armas para um possível duelo no qual ele, escritor, não teria a menor chance.
- Não é preciso nada disso agora, vamos apenas ensaiar – foi a diretora que respondeu a argumentação do ator.
- E o que vamos ensaiar? Estou curiosa – perguntou, realmente curiosa, a atriz, que parecia querer desfazer o clima tenso que propiciava desenrolar-se naquele... tapete.
- Um texto do escritor do grupo – respondeu a diretora, mostrando as folhas que ainda tinha em mãos.
- Que legal! Vou adorar! – exclamou a atriz, contente.
Encantado com a atriz, o escritor não percebeu que um outro foco de luz invadiu sua escrivaninha, trazendo-o à cena. As duas olharam para ele.
- Não tinha um escritorzinho melhor não? – foi o ator que provocou, enquanto deu alguns passos para frente, acompanhado por outro foco. O suficiente para a diretora intervir:
- Por que você diz isso?

- Porque sei o que estou dizendo. Sou apenas um ator, mas tenho certeza de que escreveria um texto bem melhor que qualquer um dos dele, que se diz escritor. Ele jamais seria um cidadão das letras; precisamos de algo melhor.
Foi quando o escritor percebeu que estava em cena:
- Falam de mim?
- Não – ironizou o ator -, eu disse melhor.
- Por que você fala assim dele? – questionou a atriz.
- O pior texto que eu escrever contra o melhor dele.
- Não fale assim! – reclamou a diretora – Ele sempre foi importante para o grupo como qualquer outro integrante.
- Ele está dizendo a verdade – atirou-se ao debate o escritor, como se de olhos fechados -. Você fala assim só pra me conformar.
- Ei! Não diga isso...- ofendeu-se ela – Sou uma diretora e digo o que penso!
O ator animou-se:
- Mas é claro que ele tem razão.
O escritor, então, foi tomado por emoções que o descontrolaram. Todo o passado estava ali, presente. Não podia nem tinha como, mas estava. Fosse um sonho e ele tentaria acordar. Mas seria o tal espetáculo fruto de uma suposta insanidade? Mas... Então estaria insano? E por que tal insanidade não se apresentou de uma forma que o deixasse feliz ao menos? Nem louco ele poderia ser feliz?! Uma onda de tristeza lhe dominou a voz ao dizer:
- Você nunca me apontou nenhum defeito que meus textos tinham, mas jamais montou um deles! Agora vem me dizer que sou útil? Preste atenção... – pega algumas folhas sobre a escrivaninha – Olhe bem para estas folhas! Se eu realmente fosse um bom escritor, ao menos um bom escritor, elas estariam repletas de letrinhas! No entanto, onde estão? Onde está o texto? Onde?!
- Ei, está sendo injusto consigo mesmo; as coisas não são assim – contestou a diretora.
- Não, eu não estou – continuou, com a voz cada vez mais alterada -. E tem mais: você é uma diretora, pode muito bem estar representando, pode muito bem estar me enganando de novo!
A diretora ficou perplexa, muda, desorientada. A atriz foi quem tentou socorrê-la:
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- Não fale assim, estamos querendo ajudá-lo. Também quero ajudá-lo, sou sua amiga – finaliza, com sincera compaixão na voz.
O escritor não sabia de onde vinha sua tristeza ao ouvir a argumentação de sua amada. Se do substantivo “amiga”, com tanta definição, como a lhe negar qualquer outra possibilidade... Ou se, de outra versão que sua mente formara instantaneamente: a doçura, a preocupação, o olhar, tudo aquilo seria para corrompê-lo, para lhe fazer crer, enfim, para defender a diretora. A dúvida entre uma das duas hipóteses e a certeza de que só poderia ser uma delas, fez a tristeza de sua voz ser substituída pela revolta, ao dizer ainda de costas para atriz:
- Amiga... Você, minha amiga. Quer saber de uma coisa? – teria gritado, caso, ao virar-se para ela, não fosse barrado pelo olhar da moça que, reverteu sua ação, fazendo-o baixar o tom de voz ao concluir: - Você também é uma atriz, pode muito bem estar me enganando também.
Foi preciso fechar os olhos e liberar as lágrimas para suportar aquela voz doce e triste lhe insistindo:
- Não, sou sua amiga. Já disse.
Num ímpeto, voltou-se de costas para ela, e, como tentasse impedir as lágrimas que já rolavam, gritou com voz firme, olhando para cima:
- Eu estou farto disso! Todos! Todos são meus amigos! Eu estou cheio de amigos, amigas... – volta-se para ela novamente, como se dispensasse sua amizade – Amigas!
O ator, que se mostrava indiferente àquela discussão, enquanto lustrava seus sapatos pretos, comentou, agora calçando os sapatos:
- Ele é louco, sempre foi. Passa horas diante de uma máquina de escrever e não consegue fazer nada que se aproveite pra nada.
- Ora, e com você, o que há? – quis saber a diretora que, ao lado da atriz, também se assustara com a atitude do escritor.
- Ora, nada. Eu estou calçando os meus sapatos – ironizou o ator.
- Fora daqui!
O grito do escritor foi tão alto e repentino, que assustou os três “hologramas”. O ator, pasmo, observava à distância, ainda com um dos sapatos nas mãos. O escritor continuava:

- Saiam daqui, agora!
- Mas eu... Eu não entendo... – balbuciou a diretora.
- Ah, não? Eu repito: eu disse fora!
Foi o suficiente. As duas, assustadas, abandonaram a cena, simplesmente desaparecendo ao fazerem-se desesperadas para correrem. O ator, um tanto impressionado, terminou de calçar os sapatos, sem tirar os olhos do escritor. E este, exausto, trêmulo, nervoso, indeciso e, sobretudo entre lágrimas, volta à escrivaninha e baixa sua cabeça sobre a máquina.
Com pose de diplomata, o ator caminhou até o escritor. Sua tranquilidade fazia-se aparente. Tirou as mãos dos bolsos e, resoluto, aplaudiu com cinismo a ação do escritor.
- Muito bem... – tomou a palavra o “diplomata” – Gostei de ver...
Continuava a aplaudir. E o escritor, lentamente ergueu a cabeça e ficou a observá-lo à sua volta. A calda de sua casaca preta, sua calça de vinco perfeito, seus sapatos brilhantes, sua camisa branca, sua pele impecável. Maquiagem e cabelos perfeitos. Quem diabos era aquele personagem que ele fazia? Ou seria ele próprio? Não poderia ser ele próprio porque não existia! E se não existia, não poderia também haver personagem, por não ter ninguém o vivendo! Enquanto observava, o escritor ouvia as palavras daquela figura que lhe rondava o espaço.
- Falando a verdade, sabemos muito bem, nós dois, que... Os seus textos são realmente uma droga. Mas, como sou um artista, mais precisamente um ator, eu sinto, claro... Tenho meus sentimentos nobres e, pretendo ajudá-lo. Posso representar, ou até mesmo viver os seus personagens, só pra te dar uma ajudinha. Se você preferir, pode chamar isso de...
- Hipócrita! – concluiu o escritor.
- Ah, não, disso não.
- Você é hipócrita! Saia já daqui também – ordenou o escritor, ao se pôr de pé.
- Ei! Além de não ter talento, é ingrato, é? – protestou o ator que, esquecendo-se das boas maneiras, partiu para cima do escritor, que, lhe apontou o dedo na cara e repetiu:
- Eu já lhe disse, fora daqui!
- Pois saiba que só me retiro no final do ato – retrucou, parando no caminho e disfarçando o seu medo enquanto se recompunha.

- Ah, é? – observou o escritor, enquanto pegou sua máquina de escrever para ameaçar o outro: - Pois veremos até quando você fica...!
Foi o suficiente para provocar o riso do ator, o que logo se transformou numa sonora gargalhada, que escondia muito bem o seu medo. Arriscou:
- Quer me atingir com isso aí? Não poderia! Ou já se esqueceu de que sou apenas fruto de sua imaginação, de sua... loucura...?
- Pois muito bem – respondeu o escritor, simulando decisão – veremos até onde vai a sua coragem... – ameaçou-o novamente, já com a máquina “armada” para ele. A atitude do ator foi sinistra: cruzou os braços e pôs-se a rir sarcasticamente.
- Pensando bem, eu vou me preparar para o próximo ato – finalizou ele, sumindo enquanto, parado, ria de braços cruzados.
Sentindo-se aniquilado, o escritor sentou-se novamente, percebendo que todos os focos tinham se apagado. Foi quando se deu conta de que estava no completo escuro. Era noite.