sábado, 25 de junho de 2011

NA REALIDADE DA FICÇÃO CAP.III

III
UMA TENTATIVA


TENTAVA ESCREVER novamente. Algumas folhas quase em branco rodeavam a máquina, espalhadas pela mesa. Ele tentava uma capa, mas não tinha certeza sequer do título.

        - Será que devo realmente me preocupar com o título agora?
        Na medida em que se repetia a mesma pergunta, arrancava a folha da máquina. Enfim, desistiu do título. Parou por alguns instantes.
        E o público? Insistia. Deveria realmente se preocupar com o público? Pensava que sim, mas as dúvidas eram-lhe insistentes. A idéia surgiu: o que interessaria as pessoas, se não algo com que elas se identificassem? Claro! O cotidiano de uma cidade grande! Bom... O dia, todos já conheciam, sabiam, viviam... Mas a noite, a noite era para poucos, de poucos. A maioria apenas ouvia falar sobre as noites, as madrugadas. A noite da burguesia? Qual? Claro, a da classe baixa, pois necessitava sempre de representantes.
        Percebia que a ideia ia surgindo, enquanto sua imaginação comandava a mente, que orientava a ação dos dedos nas teclas da velha máquina.
        Claro! Transformaria o escuro da noite! Por que não pensara nisso antes?!
        - Vejamos... Uma garota sozinha na madrugada, num lugar desconhecido, e com muito medo, quando repentinamente... Um grito! E... – parou de datilografar por um instante – Ou seria exatamente o contrário?

        Assim, tornou a arrancar a folha. Ao pegar outra, observou a folha amassada... Seria mesmo aquele o início? Pensou. Procurou em sua imaginação; esta, porém, lhe negou qualquer resposta imediata. Assim, ele levantou-se e procurou um disco na estante. Ligou o aparelho e aumentou o volume.
        Recebeu, contente, a volta da esperança. Esta lhe veio, enfim, novamente, em forma de inspiração. E que forma teria sua inspiração? Tudo era questão de momento. E naquele exato, a alegre melodia orquestrada bem que lhe permitiu continuar na mesma idéia... Um ponto de ônibus, madrugada; uma moça sozinha. Mas algo lhe dizia que não seria exatamente como ele havia imaginado.


CONDUÇÃO OCULTA

                    Madrugada. Num ponto de ônibus, uma moça está sozinha. Impaciente, ela está com os braços cruzados, enquanto bate insistente um dos pés no chão. Não aparenta ter medo. Após determinado tempo, um homem se aproxima e, depois de ouvir por alguns instantes as batidinhas do pé da moça, perde a paciência, embora tente esconder – de fato – ao perguntar a ela:


HOMEM       A senhorita não enjoa?
MOÇA          Não o conheço.
HOMEM       Eu também não a conheço e, no entanto, estou falando com você.
MOÇA          Por ser muito atrevido.
HOMEM       Êêêi! Calminha aí! Eu só estou tentando lhe dizer que as batidinhas do seu pé estão me incomodando.
MOÇA          (Irônica) Oh! Olha a minha cara de preocupada!
HOMEM       Puxa, educadinha, você, enh...
MOÇA          Ah, vê se não enche, tá legal?
HOMEM       Escuta aqui, os seus pais nunca lhe deram umas palmadinhas no bumbum não, é? Você é uma menininha muito mal educada.
MOÇA          “Menininha”? Quantos anos acha que eu tenho?
HOMEM       Uns doze, talvez... Mas longe dos treze.
MOÇA          Pois fique você sabendo que eu completo dezoito hoje mesmo, ouviu?!
HOMEM       É mesmo? Se fosse um pouquinho mais educada, eu lhe daria os parabéns.
MOÇA          Não preciso de seus parabéns, e nem estou lhe pedindo.
HOMEM       Ei! Eu não tenho culpa se o ônibus demora, tá legal?
MOÇA          Qual é, cara? Você é à pilha, é?!
HOMEM       E os seus pais nunca lhe disseram que os mais velhos devem ser tratados por “senhor” ou “senhora”, e não por “você”?
MOÇA          Pois fique sabendo que é exatamente pelo fato de eu ser muito educada que não vou respondê-lo.


        O som da máquina parou. O escritor tinha os dedos no alto, as mãos prontas para avançarem sobre o teclado da máquina, mas algo o deteve. Algo que já lhe era familiar: o branco. Repentino, feroz e implacável! Ele não havia saído dali, apenas dera um tempo. Tempo esse que nem ele próprio – nosso protagonista – podia precisar com exatidão. Mas pintara. Toda a cena ficou congelada em sua mente. Uma onda de raiva o invadiu. Raiva, talvez, de si mesmo.
        - E agora? O que eu escrevo? O que esse cara aí vai falar? Vamos! - ordenou ao personagem que, ali, ao seu lado, onde se desenrolava a cena, continuava estático – Fale alguma coisa! O que vai dizer?!?!?!
        - Ora, você é quem deve saber, não eu – lhe respondeu, de sua mente, o personagem -. Você que é o escritor.
        - Mas eu não sei... – lamentou o nosso amigo – Mas preciso mantê-los em minha mente...!
        No entanto, cansados de esperar, as duas figuras da cena se entreolharam e tomaram a decisão: deram de ombros e saíram de cena. Ou melhor, da mente do escritor.
        - Não, não façam isso, por favor! Não vão embora!
        Vendo mais uma idéia sua aniquilada, grita, revoltado:
        - Não dá mais, não dá mais, não dá! Por quê? Por quê? Droga!
        Os dedos assanharam os cabelos numa atitude comum aos seus momentos de desespero. O escritor levantou; quis andar e parou, quis parar e andou... Enfim, perdido, procurava respostas.

        - Talvez fosse porque... Porque a moça me lembrasse ela. Não! Ela não era assim, ela não é assim. Ela é exatamente o contrário... Ela é doce, meiga e...

        Repentinamente foi interrompido pelo incômodo de uma forte luz verde, vinda de um de seus canhões que iluminou o seu rosto. Do outro lado da mesa vinha outra da mesma cor, e, junto com ela, sua amiga interdimensional, a diretora.
        - Ei, rapaz, onde está o texto?
        - Você outra vez?! Já lhe disse que não tenho texto algum... – respondeu ele, algo irritado – Não sei agradar o público, será que me entende?
        - Agradar o público? – repetiu ela, desacreditando do que ouviu – Você disse “agradar o público”? Mas como “agradar o público”? “Agradar”?
        O escritor ficou um tanto surpreso com aquela atitude dela, a qual ele entendeu uma repreensão. E antes que ele pudesse lhe pedir qualquer explicação, ela continuou:
        - Não se lembra mais de tudo o que aprendeu? Como “agradar” o público? Teatro é uma arte. Arte é uma forma de expressão muito pessoal. Então não mostrará conflitos do mundo mostrando os seus? Você não é um deles? Seu personagem não é um deles? Não vê e interpreta? Não acerta e erra? Não sente e deixa sentir?
        - Sim – miou o escritor.
        - Claro que sim! Quando você conta uma história de alguém que passa na rua, você conta algo do mundo. Parta daí. Devemos fazer para nós mesmos, não para o público em si. Se gostarmos de fazer o que estivermos fazendo, se o fizermos por Amor, então é arte.
        Percebendo que suas palavras eram bebidas pelo escritor, a diretora continuou, em tom de mãe para filho:
        - Faremos com gosto e verdade. Porque o expectador que vai ao teatro tentar escapar do artificial da televisão e sua demagogia. Ele vai ao teatro porque quer o choro, o sorriso, a alegria, a tristeza... Enfim, ele quer a verdade em cena!
        - Sim... – percebia o escritor.
        - Porque o público sai de casa cheio de problemas, esperando encontrar uma razão nova, um refúgio. E nós, a família do teatro, devemos nos encarregar do sucesso da intuição dele, o que o trouxe até aqui.

        Foi só então no “aqui” da diretora que o escritor percebeu que não estava mais em seu velho cenário, mas sim de volta ao palco onde aprendera grande parte do que sabia. Percebeu também que não estava mais de pé, e sim sentado; ele e a diretora, como nos velhos tempos, num dos extremos do palco. No outro canto, avistou a sua escrivaninha com sua máquina e alguns papéis. Voltou os olhos à diretora que, confiante, continuava suas palavras, sem dar importância à surpresa dele:

        - Temos então a obrigação de fazer com que esqueçam as suas preocupações, percebendo que seus problemas não são os únicos. A arte deve, assim, questionar a vida. E quando percebemos que conseguimos envolver o público? Quando ele também chora, também ri também se emociona e, claro, quando aplaude com vivacidade o final do espetáculo.
- Sim! – entusiasmou-se o escritor.
        - Pense solto, liberte-se de tudo!
        Completou, percebendo o notável efeito que suas palavras fizeram. O escritor levantou-se e caminhou, com saudade, observando o lugar. Ela levantou-se e foi até ele.  
        - Lembra quando ensaiamos aqui um texto seu chamado “O Ponto de Ônibus”? – perguntou, também emocionada.
        - Acho que sim... – respondeu, buscando a memória.
        - Mas é claro que se lembra – interveio ela, conduzindo-o à pequena escada que dava na plateia -. Nós o ensaiamos várias vezes. Lembro bem que você o escreveu depois de uma discussão do grupo sobre os fins de semana das cidades.

        Estavam então já sentados na plateia, quando se fez o escuro. Quando as luzes foram acesas, viu-se um cenário e um personagem. Em segundos, ouviu-se o som do cotidiano de uma praça, num ponto de ônibus, num fim-de-semana. Carros, pessoas, pássaros etc.