sexta-feira, 9 de setembro de 2011

NA REALIDADE DA FICÇÃO CAP.V

V
POR ALGUM MOTIVO QUE FICA


VOLTOU-SE TODA a luz da cena à pequena mesa com a velha máquina exposta no canto esquerdo do palco. E toda a extensão deste simplesmente desaparecera. Avistava apenas aquele canto esquerdo. Nem a diretora, nem os personagens do ponto de ônibus. Tudo o que ele via daquela poltrona de platéia era a sua escrivaninha e sua velha máquina... E ele, lá, sentado, olhando o nada. Parecia tão sem vida como uma velha fotografia em preto e branco. Estático, como em transe. Percebia-se que estava vivo pela arrastada respiração... Mais uma vez um sentimento que lhe trazia incômodo lhe invadiu o ser... Ele sentia pena. Pena daquela figura triste. Pena de si. De si? assustou-se. Sim, era ele próprio. Era o que via e o que estava sendo visto! Ele?!]


         Abriu os olhos, assustado, e deparou-se consigo. Exatamente o que vira naquele palco. Ali, só, sentado; inquieto por dentro e estático por fora. Como vira no palco. O palco! Sumira, assim como a platéia... Ele estava em seu quarto, escritório, refúgio, enfim... em seu mundo pessoal. Inquietou-se de todo, levantou-se e, sem saber que direção tomar, tornou a sentar. Na folha, “Condução Oculta”. Arrancou-a da máquina e ficou a observar o rolo negro da velha Olivetti. Pôs-se a pensar nos tempos de ensaio de O Ponto de Ônibus, quando tudo era mágico, quando ele estava com ela ao menos nos ensaios, nas oficinas de teatro. Ela não veio mais o visitar. Claro, ele havia gritado com ela e a expulsou de seu mundo. Como fora imbecil! culpava-se. Ela realmente não voltou, mas não deixou completamente o mundo dele, pois este girava em torno dela. Dela.
         Não lhe interessava mais uma comédia naquele momento. Ele precisava mesmo era de aproveitar o seu estado emocional e transformá-lo em forma de expressão para passar uma mensagem à ela. Quem sabe, então, ela o desculpasse e voltasse, devolvendo-lhe o presente de sua imagem, de sua voz. Sim! Precisava escrever algo por tudo o que sentia naquele momento! Por que preocupar-se com uma comédia? Estava assim perdendo qualidade, bloqueando sua inspiração. A diretora realmente tinha razão. Sentia-se preso por tudo aquilo, sufocado, e amava ardentemente aquela moça. E também sabia que ela jamais o deixaria em paz. Para ela, para ele; por tudo o que estava passando, enrolou uma folha na máquina, colocou outro disco na agulha e foi sentar-se à escrivaninha. Era muita vontade! Alguma coisa sairia, pensava.
         A canção era Pour Elise, de Beethoven. Enquanto o piano de Walt Barks fazia-se ouvir, as mãos do escritor, ágeis, violentavam o teclado da máquina, num ato que qualquer um que visse juraria que ele não tinha a menor ideia do que escrevia.


POR ALGUM MOTIVO QUE FICA

                            A que mais posso me entregar?
                            Existe algo tão forte e envolvedor
                            Quanto aquilo que me prende, sufoca,
                            Me reprime e me mostra o que é real?

                            Existe uma força interior
                            Que determina as forças exteriores
                            Que acrescentam na mente,
                            Que nos mudam de repente,
                            Que mistura mutuamente
                            Ao nosso mundo interior?

                            Existem forças que fraquejam
                            Diante de algo inigualável
                            E são capazes de se igualarem?
                            É de força que seguimos,
                            Sejam interiores ou exteriores,
                                        Interiores e exteriores...
                            Divindades e horrores
                            Num mundo de dores
                            Que trazem desdouros,
                            Que desafiam a todos
                            E que transformam a todos.


                            Então, a que mais posso me entregar?
                            À trajetória da mente humana?
                            Da realidade humana?
                            Do coração de quem sonha?

                            Eles podem espalhar-se
                            Diante da ferida que dói,
                            Do sangue que derrama,
                            Com alguma virtude soberana
                            Vantagem veterana,
                            Que carregamos em mente,
                            Mas não mostramos realmente
                            Aos olhos de quem já não sonha...
                            Por algum motivo que fica?

                           

         O piano de Barks finalizava já Romeo and Julia, de Nino Rota. Sendo a última canção daquele vinil, ouviu-se em seguida o barulho da alavanca automática que tirava a agulha do disco e, por não ter outro para cair em seguida, ouviu-se o silêncio. Invadiu a escrivaninha como um raio intensa luz vermelha, saída do canhão do canto direito do teto. A luz logo se espalhou, e misturou-se com outras que ali aguardavam um sinal para luzirem. Boquiaberto, ao mesmo tempo em que esperançoso de ver entrar sua amada novamente, o escritor fixou seu olhar em um dos cantos do quarto. Canto, aliás, errado. Uma voz grosseira invadiu seus ouvidos, vinda do outro lado como fosse um tapa na orelha. Uma voz masculina, porém aguda, saía das cordas vocais de um sujeito magro, branco e baixo, muito bem trajado: finíssima calça social, fraque e sapatos lustrosos. Quase todo o seu traje era preto; exceção para a camisa e o lenço, brancos.
         - Onde está o texto? – cobrou o tal, de imediato.
         - Hã? – fez o escritor, confuso.
         Quem era aquele? pensava. Outro que viera lhe cobrar? Todos se achavam no direito! Quando lhe perguntaria quem era, impondo, assim, ordem em seu território, o outro lhe repetiu a pergunta em tom repreensivo:
         - Eu lhe perguntei do texto.
         - Quem é você, afinal? – conseguiu, enfim, o escritor.
         - Como “quem sou eu?” Eu sou o público! – respondeu, abrindo os braços e mantendo o corpo firme.
         - Mais essa! E o que você quer?
         - Quero saber se o texto está pronto.
         - Não é da sua conta – encorajou-se o escritor.
         - Como não? – indignou-se – Como espera que eu vá ver algo que nem sei o que é?!
         - Desculpe-me, mas o público não pode ver o texto.
         - Como não? Posso, quero e vou ver!
         - Não vai ver nada – manteve-se firme o escritor. Após uma pausa no diálogo, o público concluiu:
         - Pois eu sei porque não quer me deixar ver o texto... É porque você não o escreveu!
         - Como pode afirmar isso? – tremeu o escritor.
         - Você está tentando me enganar... – dizia a figura, enquanto caminhava para frente; ao abrir os braços, de costas para o escritor, ele brada, acompanhado de novas luzes que iluminaram então uma grande platéia de pé e chocada – Enganar o público!
         A figura do público desceu à plateia e colocou-se como orador, dizendo em tom de pesquisador:
         - Então as críticas a seu respeito são verdadeiras... É, são sim. É que é texto mixuruca mesmo. Triste de quem não sabe fazer as coisas e tem que pagar pra ver os outros fazerem! E isso, quando fazem ao menos a droga do texto!
         - Eu fiz o texto! – conseguiu o escritor, apesar de muito assustado.

         Com a mesma firmeza, a plateia sentou-se, aliviada. Mas a figura do público desafiou o escritor:
         - Fez nada! – tornou a plateia a pôr-se de pé, assustada e desconfiada. O escritor voltou a insistir:
         - Eu fiz sim! – tornou-se a sentar-se a plateia.
         - Não fez! – outra vez de pé e assustada a plateia.
         O escritor tomou uma atitude definitiva. Num grito ao ar, acompanhado por um expressivo gesto de braços, como se rasgando o espaço em volta, ele dissolveu as luzes que iluminavam a plateia, fazendo com que esta também desaparecesse e, decidido, dirigiu-se ao público, quase a lhe cuspir na cara:
         - Mas não sei do que reclama! Já lhe disse, não pode ver o texto! É teatro, se gostar bem, se não gostar, paciência!
         Agora foi o público quem se afastou, ofendido e perturbado.
         - Ah, é assim, é?
         Decidido, foi à escrivaninha e puxou a folha que estava na máquina:
         - Ah, aqui temos algo, enfim... Ainda está fazendo.
         - Não! Me devolve esta folha! Não tem nada com o texto isso aí...!
         - Deixa eu ver aqui... – lia o outro.
         - Me dá isso aqui! – pedia o escritor, enquanto tentava pegá-lo.
         - An-an – fez o público, fugindo dele e o obrigando a brincar de Tom & Jerry.
         - Você não tem o direito...
         Mais feliz na corrida foi o público que, ao dar um drible de Pelé no escritor, o deixou caído entre a escrivaninha e a cadeira. Apressado, correu a um canto para ler a folha.
        
         - Como é isso aqui...?! – impressionou-se enquanto lia.
         O escritor levantou-se, enfim, mas deixou-se ficar onde estava. Não tinha mesmo jeito, o outro já lia a folha.
         - “Por Algum Motivo Que Fica”... Minha nossa, cara! Eu já sei qual é a sua, meu! Você está amando! Você está iluminado pela Divindade! Absolvido pela Providência Divina de todas as loucuras que fizer, de todas as culpas! Você... Você é um gênio, cara!
         - Eu sou o quê?
         - Um gênio, cara! O Céu o guarda! A força do Amor está com você... Eu também amo – fez-se maior o brilho dos olhos do público, aumentado sua emoção ao continuar - ... E por ela... Por ela eu sou capaz de tudo o que você é capaz de escrever, e do que não é também.
         - O quê? – pergunta o escritor, perdido, sem esperar resposta.
         Estava abismado com a mudança daquela figura, sabe-se lá real ou não, que lhe falava de sentimentos minutos depois de ter sido demasiadamente inoportuno. Entusiasmado, o público continuava a sua viagem:
         - Sim... Por ela eu me arrasto, me mordo, me jogo, me esbofeteio, me... Ei! Por que você não escreve logo um texto romântico?
         - Romântico? – perguntou o escritor, como se não tivesse entendido as palavras do outro.
         - Mas é claro, homem! – fez este, indo passar-lhe o braço pelo ombro, enquanto concluía: - Sua inspiração o ajudará. O Amor, cara! Pensa nela e escreve. Escreve!
         - Não sei se posso, sabe...
         - Se pode? Se pergunta se pode? Cara, você tá amando! Pode fazer qualquer coisa! Escreve uma comédia romântica e pronto!
         - Bom, eu... Eu posso tentar – decidiu, afinal. Voltou-se a ele -. Mas você não me poderá ver escrever o texto.

         Mas a figura do público já não o ouvia mais. Estava a um canto, cabisbaixo, vendo algo que ninguém mais via. O escritor, que sabia muito bem o que era aquilo, aproximou-se e perguntou cuidadoso:
         - O que houve?
        
         - Estou sonhando em como será o texto. Sabe... Pode parecer ilusão, mas tenho certeza de que se parecerá muito comigo e com ela. Acontece que eu a amo muito... Mais que a mim mesmo. Mas...
         - Mas...?
         - Vê esta máquina? Ela fala com você?
         - Bom... Falando literalmente, não; é uma máquina.
         - Pois bem – suspirou -... Assim é a minha amada comigo. A máquina não fala com você porque é uma máquina. A minha amada também não me fala, e é humana.
         O escritor procurou mesmo algo positivo para dizer ao outro, mas reconhecia não estar em condições para isso. Decidiu algo que, acreditava, talvez fizesse bem aquele apaixonado. Pegou a folha do poema e lhe estendeu:
         - Pegue.
         - Pra mim? – voltou a brilhar os olhos.
         - Tem muito a ver com você também. Pertence tanto a você quanto a mim.
         - Puxa! – sorriu – o Amor é lindo! Cara, valeu mesmo! É o sentimento que amolece o coração humano... O sentimento!

         O escritor ficou ali, parado, vendo aquela figura sair contente. Saiu como as outras: parecia que seguiria uma longa jornada, quando simplesmente sumiu, como se atravessasse algum portal que o levasse de volta ao lugar de onde vinha. E de onde vinha? Não sabia. Mas naquele momento, aquilo não era o que lhe importava. O que lhe tumultuava o pensamento era um sentimento restaurador. O sentimento que lhe dizia que se mostrara covarde aquele tempo todo... Um sentimento que lhe dizia que não era o único no mundo a sentir aquilo tudo. Envergonhou-se dele próprio. Sofria por alguém que lhe dedicou tanta amizade... Mas se ela nem sequer falasse com ele... Não, ele não suportaria.
         Apesar de todos esses pensamentos lhe rodearem, ele sentiu-se capaz de terminar o texto dos opostos da “Condução Oculta”. Sentiu-se bem por saber que o que ele escrevia poderia ajudar alguém, fosse da forma que fosse. Sentiu como nunca a necessidade de escrever, e pôs-se à frente da máquina. Enrolou lhe uma folha e percebeu que os canhões de luz estavam em suas devidas direções, e apagados. Ascendeu então aquele que apontava para a mesa e colocou um disco em seu “três e um”.

NA REALIDADE DA FICÇÃO CAP.IV

IV
O PONTO DE ÔNIBUS


                        Desanimado, um vendedor de doces está “largado” a um canto da calçada. Chega uma jovem senhora com o seu filho, um pequeno garoto que mantém os olhos esbugalhados para tudo à sua volta. O vendedor “acorda”, animado com a presença do menino no ponto, e anuncia então suas cocadas:



VENDEDOR   Cocadas, cocadas... Quem vai querer...? Deliciosas cocadas caseiras, quentinhas...
MENINO          Ô mãe...
MÃE                 Que é?
MENINO          Ô manhê...
MÃE                 O que é?
MENINO          Eu quero uma cocadinha pra mim.
MÃE                 Não vou comprar nada.
MENINO          Ah, mãe, compra.
MÃE                 Já disse que não vou comprar.
MENINO          Vai sim.
MÃE                 Não vou.
MENINO          Vai.
MÃE                 Não.
MENINO          A senhora não vai mesmo comprar uma cocadinha pra mim?
MÃE                 Não! Já disse que não vou comprar nada!


                        O menino dispara a chorar, mas não intimida a mãe. O vendedor aproveita (claro):


VENDEDOR     Cocadas, deliciosas cocadas caseiras...


MENINO          Aí, mãe! São deliciosas, ele disse! Ele já comeu, ele disse, ele disse...!
MÃE                 É só propaganda, menino bobo!
MENINO          Não é não, é cocada!
MÃE                 Pára com isso! Eu não tenho dinheiro!
MENINO          Tem sim, o papai me dá pensão!
MÃE                 Mas não sobra nada.
MENINO          (Ainda chorando) Eu queeeeeeeeero!!!!!

VENDEDOR     E vamo que é gostosa, vamo que é boa, é de primeira! Cocadas quentinhas!

MENINO          Óí, mãe! Óí! Tão quentinhas, e eu tô com frio! Quero cocadas quentinhas pra mim! Eu quero, queeeeeero!!!!
MÃE                 Pois pode chorar e gritar à vontade! Pula, macaco, pula...! chora até a sua gargantinha cansar, até ela doer, que eu não vou comprar nada e pronto!
                        É aí que chega ao ponto, para aumentar ainda mais a animação do vendedor, um jovem senhor com sua pequena filha – aparentemente da mesma idade do garoto chorão. Ao vê-los se aproximarem, a mãe do menino, envergonhada, procura acalmar o filho:


MÃE               (Carinhosa) Não, filhinho, não chora não... Olha, a mamãe compra uma cocadinha pra você, tá bom? Não chora mais não...
PAI                   Vamos sentar um pouco, filha...
MÃE                 (Imediata) Não! Er... Quero dizer, o banco está sujo e, pode sujar a roupinha dela. E a sua também.
PAI                   Ah, obrigado, senhora.
MÃE                 Ora, me chame de você, não sou tão velha assim.
PAI                   Oh, não, de maneira alguma eu quis dizer isso. É que eu vi o menino e pensei...
MÃE                 Ah, sim, é meu filhinho sim. E (olha para a menina)...
PAI                   Sim, é a minha filhinha.


                            O menino, percebendo o rumo da conversa, começa a puxar a saia da mãe, mas ao perceber que a menina lhe observa, esquece as cocadas. Assim, enquanto a conversa do casal se desenrola, a brincadeira das crianças também flui.


VENDEDOR     (Um tanto impaciente) Cocadas, deliciosas cocadas caseiras, docinhas, lindas e irresistíveis... Ah! E quentinhas também, para quem tem frio!
PAI                        Vai levar o seu lindo filho pra passear?
MÃE                     É sim, para distraí-lo um pouquinho... Não tem outra criança pra brincar com ele, sabe como é... Vamos ao parque.
PAI                   É uma excelente escolha. Então ele é filho único?
MÃE                 Graças a Deus! Quero dizer, sim, é sim.
PAI                   É realmente uma criança encantadora.

                        O menino lhe responde com uma careta. Disfarçadamente, a mãe lhe dá um beliscão caprichado no braço, ele grita:


MENINO          Aaai, mãe! Dói!
MÃE                 E... A menininha, é filha única também?
PAI                   Sim, única também.
MÃE                 É uma gracinha!


                        A menina lhe faz careta também, o pai nem percebe. E quanto ao nosso amigo, o vendedor, continua anunciando suas cocadas, porém, com menos entusiasmo que antes:


VENDEDOR     Cocadas.


                        Por aí é que chega ao ponto um outro sujeito. Mostrando-se um tanto disperso do que lhe rodeia. O vendedor enxerga mais uma esperança naquela figura distraída que, talvez sem perceber, pára por ali mesmo.


VENDEDOR     Cocadas, deliciosas cocadas caseiras...
DISTRAÍDO     Hã? Cocadas? Parece que ouvi alguém dizer cocadas. Será que eu gosto de cocadas? Não me lembro...
VENDEDOR     Mas é claro, senhor! Cocadas caseiras!
DISTRAÍDO     Você acha que eu gosto, é?
VENDEDOR     Mas é claro que sim, todo mundo gosta! Aqui está. Olha só que beleza que é... Que delícia de cocada! Não é mesmo?
DISTRAÍDO     Hummm... Realmente é uma delícia...


                        Ao ouvir uma freada brusca, o distraído então percebe que é o seu ônibus que está parado no ponto.
DISTRAÍDO     É meu! É meu! O meu ônibus! Espere, motorista, por favor... Me espere!
VENDEDOR     Ei! E o meu dinheiro?!?!?


                        O motorista espera. O distraído embarca com o que sobrou da cocada - tão alvoroçado e rápido, a ponto de esquecer (mesmo) o vendedor. Este, por sua vez, pobre coitado! ficou irritadíssimo! Mas vejamos a freada brusca do ônibus: deu-se pelo fato de um homem muito apressado correr atravessando na frente do veículo, forçando o motorista a parar inesperadamente, porém, o ônibus não servia para o tal sujeito, que grita grosserias – indignado – vendo o ônibus partir:


ATRASADO      (Irritado) Droga! Só acontece comigo! Só comigo! É só porque estou atrasado! Eu já perdi, aposto que já perdi o meu ônibus!
VENDEDOR     (Arriscando) Cocadas, senhor?
ATRASADO      Não, não posso, estou muito atrasado!


                        E assim continua. O casal adulto conversando, enquanto as crianças brincam. O tal atrasado continua impaciente, enquanto o vendedor o “atormenta” para que compre uma de suas cocadas.


PAI                   Quer dizer que não mora mais com o marido?
MÃE                 Não, é sério; sou mesmo divorciada. Eu resolvi largá-lo, sabe...
MENINO          Não foi ele quem largou a senhora, mãe?
PAI                   Bem, eu também sou divorciado.
MENINA           Ele foi chifrado.


                        O vendedor, que nada conseguiu aqui ou ali, resolve arriscar novamente com as crianças, principalmente no menino, que já havia pedido os seus doces. Gesticula a este, sem que os adultos, distraídos como estão, o notem.


MENINO          (Gritando) Ò mãe! ele quer que eu pido!
MÃE                 (Corrigindo-o) Peço! (o vendedor afasta-se)

MENINA           Olha lá, papai, vem vindo um ônibus!
MÃE                 Ah, é o nosso, filho; parou no farol. Puxa! Eu nem estou reparando nos ônibus que passam!
PAI                   Eu realmente ficaria encantado se viessem conosco ao clube, e a Thaís também, não é mesmo, Thaís?
MENINA           É, é e é!!!
MENINO          Ah, legal, mãe! vamos sim!
PAI                   Bom, parece que só falta você decidir... Pode apostar, você vai adorar o lugar.
MÃE                 Tá bom, eu topo... Mas Leonardo...
PAI                   Ora, Marlene, sem recomendações. E por favor, me chame de Léo, é assim que a maioria me chama.
MENINA           Eu o chamo de pai.
MENINO          O farol abriu, mãe, olha lá!
PAI                   Mas agora pegaremos o mesmo ônibus; e este aí não serve.
CRIANÇAS       (Pulando contentes) Êba! Nós vamos brincar juntos!


                        Enquanto eles comemoram, o vendedor também comemora, ainda que intimamente apenas: o atrasado já tem a cocada em mãos. Porém, quando vai puxar a carteira do bolso, percebe o ônibus:


ATRASADO      É este! É este aí! Meu, meu! Agora sim eu vou!


                        E em questão de segundos, o ônibus parte, levando o sujeito atrasado, e a cocada, e, deixando o nosso amigo vendedor novamente irritado, além de desanimado.
MÃE                 Meu Deus! Você viu só?
PAI                   É... As pessoas têm muita pressa hoje em dia. E muitas vezes, são inconsequentes por causa disso.
MÃE                 Saiu igualzinho como chegou.
PAI                   É louco. Lá no clube não tem disso não; tudo lá é tranqüilo. Claro que tem a bagunça da criançada, mas além de normal é até divertido...
MÃE                 Claro, deve ser bonito.


                        O vendedor, não vendo mais alternativa, toma a atitude: desesperado, aproxima-se dos dois casais e, ajoelhado, implora:


VENDEDOR     Pelo Amor de Deus! Comprem minhas cocadinhas. Minhas perfeitas, deliciosas e quentinhas cocadinhas caseiras!


PAI                   Vocês querem cocadas, crianças?
CRIANÇAS       (Sinalizando “não” com a cabeça) An-an.
PAI                   Marlene?
MÃE                 (Vingativa) Não, muito obrigada.
PAI                   Bom, eu também não quero. Muito obrigado, amigo, mas não queremos.
MENINO          Olha lá, mãe! outro ônibus!
PAI                   Ah, agora sim é o nosso...
CRIANÇAS       Êba! Vamos brincar no clube!


                        Dado o sinal, o ônibus pára; eles entram. Por último, Leonardo, que fala ao vendedor:


PAI                   Boa sorte, amigo. Espero que volte sem nenhuma cocada pra casa. Bom fim de semana (o ônibus parte, deixando o que sobrou do nosso amigo, o vendedor).

VENDEDOR     Não senhor. Não voltarei com nenhuma cocadinha. Nenhumazinha sequer (morde uma cocada)! Droga! Nenhumazinha mesmo pra contar a história (morde outra)! Ah, droga!(Morde outra, outra, outra e mais outra, e outra, e outra...) Droga! Droga, droga (...)!

sábado, 25 de junho de 2011

NA REALIDADE DA FICÇÃO CAP.III

III
UMA TENTATIVA


TENTAVA ESCREVER novamente. Algumas folhas quase em branco rodeavam a máquina, espalhadas pela mesa. Ele tentava uma capa, mas não tinha certeza sequer do título.

        - Será que devo realmente me preocupar com o título agora?
        Na medida em que se repetia a mesma pergunta, arrancava a folha da máquina. Enfim, desistiu do título. Parou por alguns instantes.
        E o público? Insistia. Deveria realmente se preocupar com o público? Pensava que sim, mas as dúvidas eram-lhe insistentes. A idéia surgiu: o que interessaria as pessoas, se não algo com que elas se identificassem? Claro! O cotidiano de uma cidade grande! Bom... O dia, todos já conheciam, sabiam, viviam... Mas a noite, a noite era para poucos, de poucos. A maioria apenas ouvia falar sobre as noites, as madrugadas. A noite da burguesia? Qual? Claro, a da classe baixa, pois necessitava sempre de representantes.
        Percebia que a ideia ia surgindo, enquanto sua imaginação comandava a mente, que orientava a ação dos dedos nas teclas da velha máquina.
        Claro! Transformaria o escuro da noite! Por que não pensara nisso antes?!
        - Vejamos... Uma garota sozinha na madrugada, num lugar desconhecido, e com muito medo, quando repentinamente... Um grito! E... – parou de datilografar por um instante – Ou seria exatamente o contrário?

        Assim, tornou a arrancar a folha. Ao pegar outra, observou a folha amassada... Seria mesmo aquele o início? Pensou. Procurou em sua imaginação; esta, porém, lhe negou qualquer resposta imediata. Assim, ele levantou-se e procurou um disco na estante. Ligou o aparelho e aumentou o volume.
        Recebeu, contente, a volta da esperança. Esta lhe veio, enfim, novamente, em forma de inspiração. E que forma teria sua inspiração? Tudo era questão de momento. E naquele exato, a alegre melodia orquestrada bem que lhe permitiu continuar na mesma idéia... Um ponto de ônibus, madrugada; uma moça sozinha. Mas algo lhe dizia que não seria exatamente como ele havia imaginado.


CONDUÇÃO OCULTA

                    Madrugada. Num ponto de ônibus, uma moça está sozinha. Impaciente, ela está com os braços cruzados, enquanto bate insistente um dos pés no chão. Não aparenta ter medo. Após determinado tempo, um homem se aproxima e, depois de ouvir por alguns instantes as batidinhas do pé da moça, perde a paciência, embora tente esconder – de fato – ao perguntar a ela:


HOMEM       A senhorita não enjoa?
MOÇA          Não o conheço.
HOMEM       Eu também não a conheço e, no entanto, estou falando com você.
MOÇA          Por ser muito atrevido.
HOMEM       Êêêi! Calminha aí! Eu só estou tentando lhe dizer que as batidinhas do seu pé estão me incomodando.
MOÇA          (Irônica) Oh! Olha a minha cara de preocupada!
HOMEM       Puxa, educadinha, você, enh...
MOÇA          Ah, vê se não enche, tá legal?
HOMEM       Escuta aqui, os seus pais nunca lhe deram umas palmadinhas no bumbum não, é? Você é uma menininha muito mal educada.
MOÇA          “Menininha”? Quantos anos acha que eu tenho?
HOMEM       Uns doze, talvez... Mas longe dos treze.
MOÇA          Pois fique você sabendo que eu completo dezoito hoje mesmo, ouviu?!
HOMEM       É mesmo? Se fosse um pouquinho mais educada, eu lhe daria os parabéns.
MOÇA          Não preciso de seus parabéns, e nem estou lhe pedindo.
HOMEM       Ei! Eu não tenho culpa se o ônibus demora, tá legal?
MOÇA          Qual é, cara? Você é à pilha, é?!
HOMEM       E os seus pais nunca lhe disseram que os mais velhos devem ser tratados por “senhor” ou “senhora”, e não por “você”?
MOÇA          Pois fique sabendo que é exatamente pelo fato de eu ser muito educada que não vou respondê-lo.


        O som da máquina parou. O escritor tinha os dedos no alto, as mãos prontas para avançarem sobre o teclado da máquina, mas algo o deteve. Algo que já lhe era familiar: o branco. Repentino, feroz e implacável! Ele não havia saído dali, apenas dera um tempo. Tempo esse que nem ele próprio – nosso protagonista – podia precisar com exatidão. Mas pintara. Toda a cena ficou congelada em sua mente. Uma onda de raiva o invadiu. Raiva, talvez, de si mesmo.
        - E agora? O que eu escrevo? O que esse cara aí vai falar? Vamos! - ordenou ao personagem que, ali, ao seu lado, onde se desenrolava a cena, continuava estático – Fale alguma coisa! O que vai dizer?!?!?!
        - Ora, você é quem deve saber, não eu – lhe respondeu, de sua mente, o personagem -. Você que é o escritor.
        - Mas eu não sei... – lamentou o nosso amigo – Mas preciso mantê-los em minha mente...!
        No entanto, cansados de esperar, as duas figuras da cena se entreolharam e tomaram a decisão: deram de ombros e saíram de cena. Ou melhor, da mente do escritor.
        - Não, não façam isso, por favor! Não vão embora!
        Vendo mais uma idéia sua aniquilada, grita, revoltado:
        - Não dá mais, não dá mais, não dá! Por quê? Por quê? Droga!
        Os dedos assanharam os cabelos numa atitude comum aos seus momentos de desespero. O escritor levantou; quis andar e parou, quis parar e andou... Enfim, perdido, procurava respostas.

        - Talvez fosse porque... Porque a moça me lembrasse ela. Não! Ela não era assim, ela não é assim. Ela é exatamente o contrário... Ela é doce, meiga e...

        Repentinamente foi interrompido pelo incômodo de uma forte luz verde, vinda de um de seus canhões que iluminou o seu rosto. Do outro lado da mesa vinha outra da mesma cor, e, junto com ela, sua amiga interdimensional, a diretora.
        - Ei, rapaz, onde está o texto?
        - Você outra vez?! Já lhe disse que não tenho texto algum... – respondeu ele, algo irritado – Não sei agradar o público, será que me entende?
        - Agradar o público? – repetiu ela, desacreditando do que ouviu – Você disse “agradar o público”? Mas como “agradar o público”? “Agradar”?
        O escritor ficou um tanto surpreso com aquela atitude dela, a qual ele entendeu uma repreensão. E antes que ele pudesse lhe pedir qualquer explicação, ela continuou:
        - Não se lembra mais de tudo o que aprendeu? Como “agradar” o público? Teatro é uma arte. Arte é uma forma de expressão muito pessoal. Então não mostrará conflitos do mundo mostrando os seus? Você não é um deles? Seu personagem não é um deles? Não vê e interpreta? Não acerta e erra? Não sente e deixa sentir?
        - Sim – miou o escritor.
        - Claro que sim! Quando você conta uma história de alguém que passa na rua, você conta algo do mundo. Parta daí. Devemos fazer para nós mesmos, não para o público em si. Se gostarmos de fazer o que estivermos fazendo, se o fizermos por Amor, então é arte.
        Percebendo que suas palavras eram bebidas pelo escritor, a diretora continuou, em tom de mãe para filho:
        - Faremos com gosto e verdade. Porque o expectador que vai ao teatro tentar escapar do artificial da televisão e sua demagogia. Ele vai ao teatro porque quer o choro, o sorriso, a alegria, a tristeza... Enfim, ele quer a verdade em cena!
        - Sim... – percebia o escritor.
        - Porque o público sai de casa cheio de problemas, esperando encontrar uma razão nova, um refúgio. E nós, a família do teatro, devemos nos encarregar do sucesso da intuição dele, o que o trouxe até aqui.

        Foi só então no “aqui” da diretora que o escritor percebeu que não estava mais em seu velho cenário, mas sim de volta ao palco onde aprendera grande parte do que sabia. Percebeu também que não estava mais de pé, e sim sentado; ele e a diretora, como nos velhos tempos, num dos extremos do palco. No outro canto, avistou a sua escrivaninha com sua máquina e alguns papéis. Voltou os olhos à diretora que, confiante, continuava suas palavras, sem dar importância à surpresa dele:

        - Temos então a obrigação de fazer com que esqueçam as suas preocupações, percebendo que seus problemas não são os únicos. A arte deve, assim, questionar a vida. E quando percebemos que conseguimos envolver o público? Quando ele também chora, também ri também se emociona e, claro, quando aplaude com vivacidade o final do espetáculo.
- Sim! – entusiasmou-se o escritor.
        - Pense solto, liberte-se de tudo!
        Completou, percebendo o notável efeito que suas palavras fizeram. O escritor levantou-se e caminhou, com saudade, observando o lugar. Ela levantou-se e foi até ele.  
        - Lembra quando ensaiamos aqui um texto seu chamado “O Ponto de Ônibus”? – perguntou, também emocionada.
        - Acho que sim... – respondeu, buscando a memória.
        - Mas é claro que se lembra – interveio ela, conduzindo-o à pequena escada que dava na plateia -. Nós o ensaiamos várias vezes. Lembro bem que você o escreveu depois de uma discussão do grupo sobre os fins de semana das cidades.

        Estavam então já sentados na plateia, quando se fez o escuro. Quando as luzes foram acesas, viu-se um cenário e um personagem. Em segundos, ouviu-se o som do cotidiano de uma praça, num ponto de ônibus, num fim-de-semana. Carros, pessoas, pássaros etc.