IV
O PONTO DE ÔNIBUS
Desanimado, um vendedor de doces está “largado” a um canto da calçada. Chega uma jovem senhora com o seu filho, um pequeno garoto que mantém os olhos esbugalhados para tudo à sua volta. O vendedor “acorda”, animado com a presença do menino no ponto, e anuncia então suas cocadas:
VENDEDOR Cocadas, cocadas... Quem vai querer...? Deliciosas cocadas caseiras, quentinhas...
MENINO Ô mãe...
MÃE Que é?
MENINO Ô manhê...
MÃE O que é?
MENINO Eu quero uma cocadinha pra mim.
MÃE Não vou comprar nada.
MENINO Ah, mãe, compra.
MÃE Já disse que não vou comprar.
MENINO Vai sim.
MÃE Não vou.
MENINO Vai.
MÃE Não.
MENINO A senhora não vai mesmo comprar uma cocadinha pra mim?
MÃE Não! Já disse que não vou comprar nada!
O menino dispara a chorar, mas não intimida a mãe. O vendedor aproveita (claro):
VENDEDOR Cocadas, deliciosas cocadas caseiras...
MENINO Aí, mãe! São deliciosas, ele disse! Ele já comeu, ele disse, ele disse...!
MÃE É só propaganda, menino bobo!
MENINO Não é não, é cocada!
MÃE Pára com isso! Eu não tenho dinheiro!
MENINO Tem sim, o papai me dá pensão!
MÃE Mas não sobra nada.
MENINO (Ainda chorando) Eu queeeeeeeeero!!!!!
VENDEDOR E vamo que é gostosa, vamo que é boa, é de primeira! Cocadas quentinhas!
MENINO Óí, mãe! Óí! Tão quentinhas, e eu tô com frio! Quero cocadas quentinhas pra mim! Eu quero, queeeeeero!!!!
MÃE Pois pode chorar e gritar à vontade! Pula, macaco, pula...! chora até a sua gargantinha cansar, até ela doer, que eu não vou comprar nada e pronto!
É aí que chega ao ponto, para aumentar ainda mais a animação do vendedor, um jovem senhor com sua pequena filha – aparentemente da mesma idade do garoto chorão. Ao vê-los se aproximarem, a mãe do menino, envergonhada, procura acalmar o filho:
MÃE (Carinhosa) Não, filhinho, não chora não... Olha, a mamãe compra uma cocadinha pra você, tá bom? Não chora mais não...
PAI Vamos sentar um pouco, filha...
MÃE (Imediata) Não! Er... Quero dizer, o banco está sujo e, pode sujar a roupinha dela. E a sua também.
PAI Ah, obrigado, senhora.
MÃE Ora, me chame de você, não sou tão velha assim.
PAI Oh, não, de maneira alguma eu quis dizer isso. É que eu vi o menino e pensei...
MÃE Ah, sim, é meu filhinho sim. E (olha para a menina)...
PAI Sim, é a minha filhinha.
O menino, percebendo o rumo da conversa, começa a puxar a saia da mãe, mas ao perceber que a menina lhe observa, esquece as cocadas. Assim, enquanto a conversa do casal se desenrola, a brincadeira das crianças também flui.
VENDEDOR (Um tanto impaciente) Cocadas, deliciosas cocadas caseiras, docinhas, lindas e irresistíveis... Ah! E quentinhas também, para quem tem frio!
PAI Vai levar o seu lindo filho pra passear?
MÃE É sim, para distraí-lo um pouquinho... Não tem outra criança pra brincar com ele, sabe como é... Vamos ao parque.
PAI É uma excelente escolha. Então ele é filho único?
MÃE Graças a Deus! Quero dizer, sim, é sim.
PAI É realmente uma criança encantadora.
O menino lhe responde com uma careta. Disfarçadamente, a mãe lhe dá um beliscão caprichado no braço, ele grita:
MENINO Aaai, mãe! Dói!
MÃE E... A menininha, é filha única também?
PAI Sim, única também.
MÃE É uma gracinha!
A menina lhe faz careta também, o pai nem percebe. E quanto ao nosso amigo, o vendedor, continua anunciando suas cocadas, porém, com menos entusiasmo que antes:
VENDEDOR Cocadas.
Por aí é que chega ao ponto um outro sujeito. Mostrando-se um tanto disperso do que lhe rodeia. O vendedor enxerga mais uma esperança naquela figura distraída que, talvez sem perceber, pára por ali mesmo.
VENDEDOR Cocadas, deliciosas cocadas caseiras...
DISTRAÍDO Hã? Cocadas? Parece que ouvi alguém dizer cocadas. Será que eu gosto de cocadas? Não me lembro...
VENDEDOR Mas é claro, senhor! Cocadas caseiras!
DISTRAÍDO Você acha que eu gosto, é?
VENDEDOR Mas é claro que sim, todo mundo gosta! Aqui está. Olha só que beleza que é... Que delícia de cocada! Não é mesmo?
DISTRAÍDO Hummm... Realmente é uma delícia...
Ao ouvir uma freada brusca, o distraído então percebe que é o seu ônibus que está parado no ponto.
DISTRAÍDO É meu! É meu! O meu ônibus! Espere, motorista, por favor... Me espere!
VENDEDOR Ei! E o meu dinheiro?!?!?
O motorista espera. O distraído embarca com o que sobrou da cocada - tão alvoroçado e rápido, a ponto de esquecer (mesmo) o vendedor. Este, por sua vez, pobre coitado! ficou irritadíssimo! Mas vejamos a freada brusca do ônibus: deu-se pelo fato de um homem muito apressado correr atravessando na frente do veículo, forçando o motorista a parar inesperadamente, porém, o ônibus não servia para o tal sujeito, que grita grosserias – indignado – vendo o ônibus partir:
ATRASADO (Irritado) Droga! Só acontece comigo! Só comigo! É só porque estou atrasado! Eu já perdi, aposto que já perdi o meu ônibus!
VENDEDOR (Arriscando) Cocadas, senhor?
ATRASADO Não, não posso, estou muito atrasado!
E assim continua. O casal adulto conversando, enquanto as crianças brincam. O tal atrasado continua impaciente, enquanto o vendedor o “atormenta” para que compre uma de suas cocadas.
PAI Quer dizer que não mora mais com o marido?
MÃE Não, é sério; sou mesmo divorciada. Eu resolvi largá-lo, sabe...
MENINO Não foi ele quem largou a senhora, mãe?
PAI Bem, eu também sou divorciado.
MENINA Ele foi chifrado.
O vendedor, que nada conseguiu aqui ou ali, resolve arriscar novamente com as crianças, principalmente no menino, que já havia pedido os seus doces. Gesticula a este, sem que os adultos, distraídos como estão, o notem.
MENINO (Gritando) Ò mãe! ele quer que eu pido!
MÃE (Corrigindo-o) Peço! (o vendedor afasta-se)
MENINA Olha lá, papai, vem vindo um ônibus!
MÃE Ah, é o nosso, filho; parou no farol. Puxa! Eu nem estou reparando nos ônibus que passam!
PAI Eu realmente ficaria encantado se viessem conosco ao clube, e a Thaís também, não é mesmo, Thaís?
MENINA É, é e é!!!
MENINO Ah, legal, mãe! vamos sim!
PAI Bom, parece que só falta você decidir... Pode apostar, você vai adorar o lugar.
MÃE Tá bom, eu topo... Mas Leonardo...
PAI Ora, Marlene, sem recomendações. E por favor, me chame de Léo, é assim que a maioria me chama.
MENINA Eu o chamo de pai.
MENINO O farol abriu, mãe, olha lá!
PAI Mas agora pegaremos o mesmo ônibus; e este aí não serve.
CRIANÇAS (Pulando contentes) Êba! Nós vamos brincar juntos!
Enquanto eles comemoram, o vendedor também comemora, ainda que intimamente apenas: o atrasado já tem a cocada em mãos. Porém, quando vai puxar a carteira do bolso, percebe o ônibus:
ATRASADO É este! É este aí! Meu, meu! Agora sim eu vou!
E em questão de segundos, o ônibus parte, levando o sujeito atrasado, e a cocada, e, deixando o nosso amigo vendedor novamente irritado, além de desanimado.
MÃE Meu Deus! Você viu só?
PAI É... As pessoas têm muita pressa hoje em dia. E muitas vezes, são inconsequentes por causa disso.
MÃE Saiu igualzinho como chegou.
PAI É louco. Lá no clube não tem disso não; tudo lá é tranqüilo. Claro que tem a bagunça da criançada, mas além de normal é até divertido...
MÃE Claro, deve ser bonito.
O vendedor, não vendo mais alternativa, toma a atitude: desesperado, aproxima-se dos dois casais e, ajoelhado, implora:
VENDEDOR Pelo Amor de Deus! Comprem minhas cocadinhas. Minhas perfeitas, deliciosas e quentinhas cocadinhas caseiras!
PAI Vocês querem cocadas, crianças?
CRIANÇAS (Sinalizando “não” com a cabeça) An-an.
PAI Marlene?
MÃE (Vingativa) Não, muito obrigada.
PAI Bom, eu também não quero. Muito obrigado, amigo, mas não queremos.
MENINO Olha lá, mãe! outro ônibus!
PAI Ah, agora sim é o nosso...
CRIANÇAS Êba! Vamos brincar no clube!
Dado o sinal, o ônibus pára; eles entram. Por último, Leonardo, que fala ao vendedor:
PAI Boa sorte, amigo. Espero que volte sem nenhuma cocada pra casa. Bom fim de semana (o ônibus parte, deixando o que sobrou do nosso amigo, o vendedor).
VENDEDOR Não senhor. Não voltarei com nenhuma cocadinha. Nenhumazinha sequer (morde uma cocada)! Droga! Nenhumazinha mesmo pra contar a história (morde outra)! Ah, droga!(Morde outra, outra, outra e mais outra, e outra, e outra...) Droga! Droga, droga (...)!
Nenhum comentário:
Postar um comentário