sexta-feira, 9 de setembro de 2011

NA REALIDADE DA FICÇÃO CAP.IV

IV
O PONTO DE ÔNIBUS


                        Desanimado, um vendedor de doces está “largado” a um canto da calçada. Chega uma jovem senhora com o seu filho, um pequeno garoto que mantém os olhos esbugalhados para tudo à sua volta. O vendedor “acorda”, animado com a presença do menino no ponto, e anuncia então suas cocadas:



VENDEDOR   Cocadas, cocadas... Quem vai querer...? Deliciosas cocadas caseiras, quentinhas...
MENINO          Ô mãe...
MÃE                 Que é?
MENINO          Ô manhê...
MÃE                 O que é?
MENINO          Eu quero uma cocadinha pra mim.
MÃE                 Não vou comprar nada.
MENINO          Ah, mãe, compra.
MÃE                 Já disse que não vou comprar.
MENINO          Vai sim.
MÃE                 Não vou.
MENINO          Vai.
MÃE                 Não.
MENINO          A senhora não vai mesmo comprar uma cocadinha pra mim?
MÃE                 Não! Já disse que não vou comprar nada!


                        O menino dispara a chorar, mas não intimida a mãe. O vendedor aproveita (claro):


VENDEDOR     Cocadas, deliciosas cocadas caseiras...


MENINO          Aí, mãe! São deliciosas, ele disse! Ele já comeu, ele disse, ele disse...!
MÃE                 É só propaganda, menino bobo!
MENINO          Não é não, é cocada!
MÃE                 Pára com isso! Eu não tenho dinheiro!
MENINO          Tem sim, o papai me dá pensão!
MÃE                 Mas não sobra nada.
MENINO          (Ainda chorando) Eu queeeeeeeeero!!!!!

VENDEDOR     E vamo que é gostosa, vamo que é boa, é de primeira! Cocadas quentinhas!

MENINO          Óí, mãe! Óí! Tão quentinhas, e eu tô com frio! Quero cocadas quentinhas pra mim! Eu quero, queeeeeero!!!!
MÃE                 Pois pode chorar e gritar à vontade! Pula, macaco, pula...! chora até a sua gargantinha cansar, até ela doer, que eu não vou comprar nada e pronto!
                        É aí que chega ao ponto, para aumentar ainda mais a animação do vendedor, um jovem senhor com sua pequena filha – aparentemente da mesma idade do garoto chorão. Ao vê-los se aproximarem, a mãe do menino, envergonhada, procura acalmar o filho:


MÃE               (Carinhosa) Não, filhinho, não chora não... Olha, a mamãe compra uma cocadinha pra você, tá bom? Não chora mais não...
PAI                   Vamos sentar um pouco, filha...
MÃE                 (Imediata) Não! Er... Quero dizer, o banco está sujo e, pode sujar a roupinha dela. E a sua também.
PAI                   Ah, obrigado, senhora.
MÃE                 Ora, me chame de você, não sou tão velha assim.
PAI                   Oh, não, de maneira alguma eu quis dizer isso. É que eu vi o menino e pensei...
MÃE                 Ah, sim, é meu filhinho sim. E (olha para a menina)...
PAI                   Sim, é a minha filhinha.


                            O menino, percebendo o rumo da conversa, começa a puxar a saia da mãe, mas ao perceber que a menina lhe observa, esquece as cocadas. Assim, enquanto a conversa do casal se desenrola, a brincadeira das crianças também flui.


VENDEDOR     (Um tanto impaciente) Cocadas, deliciosas cocadas caseiras, docinhas, lindas e irresistíveis... Ah! E quentinhas também, para quem tem frio!
PAI                        Vai levar o seu lindo filho pra passear?
MÃE                     É sim, para distraí-lo um pouquinho... Não tem outra criança pra brincar com ele, sabe como é... Vamos ao parque.
PAI                   É uma excelente escolha. Então ele é filho único?
MÃE                 Graças a Deus! Quero dizer, sim, é sim.
PAI                   É realmente uma criança encantadora.

                        O menino lhe responde com uma careta. Disfarçadamente, a mãe lhe dá um beliscão caprichado no braço, ele grita:


MENINO          Aaai, mãe! Dói!
MÃE                 E... A menininha, é filha única também?
PAI                   Sim, única também.
MÃE                 É uma gracinha!


                        A menina lhe faz careta também, o pai nem percebe. E quanto ao nosso amigo, o vendedor, continua anunciando suas cocadas, porém, com menos entusiasmo que antes:


VENDEDOR     Cocadas.


                        Por aí é que chega ao ponto um outro sujeito. Mostrando-se um tanto disperso do que lhe rodeia. O vendedor enxerga mais uma esperança naquela figura distraída que, talvez sem perceber, pára por ali mesmo.


VENDEDOR     Cocadas, deliciosas cocadas caseiras...
DISTRAÍDO     Hã? Cocadas? Parece que ouvi alguém dizer cocadas. Será que eu gosto de cocadas? Não me lembro...
VENDEDOR     Mas é claro, senhor! Cocadas caseiras!
DISTRAÍDO     Você acha que eu gosto, é?
VENDEDOR     Mas é claro que sim, todo mundo gosta! Aqui está. Olha só que beleza que é... Que delícia de cocada! Não é mesmo?
DISTRAÍDO     Hummm... Realmente é uma delícia...


                        Ao ouvir uma freada brusca, o distraído então percebe que é o seu ônibus que está parado no ponto.
DISTRAÍDO     É meu! É meu! O meu ônibus! Espere, motorista, por favor... Me espere!
VENDEDOR     Ei! E o meu dinheiro?!?!?


                        O motorista espera. O distraído embarca com o que sobrou da cocada - tão alvoroçado e rápido, a ponto de esquecer (mesmo) o vendedor. Este, por sua vez, pobre coitado! ficou irritadíssimo! Mas vejamos a freada brusca do ônibus: deu-se pelo fato de um homem muito apressado correr atravessando na frente do veículo, forçando o motorista a parar inesperadamente, porém, o ônibus não servia para o tal sujeito, que grita grosserias – indignado – vendo o ônibus partir:


ATRASADO      (Irritado) Droga! Só acontece comigo! Só comigo! É só porque estou atrasado! Eu já perdi, aposto que já perdi o meu ônibus!
VENDEDOR     (Arriscando) Cocadas, senhor?
ATRASADO      Não, não posso, estou muito atrasado!


                        E assim continua. O casal adulto conversando, enquanto as crianças brincam. O tal atrasado continua impaciente, enquanto o vendedor o “atormenta” para que compre uma de suas cocadas.


PAI                   Quer dizer que não mora mais com o marido?
MÃE                 Não, é sério; sou mesmo divorciada. Eu resolvi largá-lo, sabe...
MENINO          Não foi ele quem largou a senhora, mãe?
PAI                   Bem, eu também sou divorciado.
MENINA           Ele foi chifrado.


                        O vendedor, que nada conseguiu aqui ou ali, resolve arriscar novamente com as crianças, principalmente no menino, que já havia pedido os seus doces. Gesticula a este, sem que os adultos, distraídos como estão, o notem.


MENINO          (Gritando) Ò mãe! ele quer que eu pido!
MÃE                 (Corrigindo-o) Peço! (o vendedor afasta-se)

MENINA           Olha lá, papai, vem vindo um ônibus!
MÃE                 Ah, é o nosso, filho; parou no farol. Puxa! Eu nem estou reparando nos ônibus que passam!
PAI                   Eu realmente ficaria encantado se viessem conosco ao clube, e a Thaís também, não é mesmo, Thaís?
MENINA           É, é e é!!!
MENINO          Ah, legal, mãe! vamos sim!
PAI                   Bom, parece que só falta você decidir... Pode apostar, você vai adorar o lugar.
MÃE                 Tá bom, eu topo... Mas Leonardo...
PAI                   Ora, Marlene, sem recomendações. E por favor, me chame de Léo, é assim que a maioria me chama.
MENINA           Eu o chamo de pai.
MENINO          O farol abriu, mãe, olha lá!
PAI                   Mas agora pegaremos o mesmo ônibus; e este aí não serve.
CRIANÇAS       (Pulando contentes) Êba! Nós vamos brincar juntos!


                        Enquanto eles comemoram, o vendedor também comemora, ainda que intimamente apenas: o atrasado já tem a cocada em mãos. Porém, quando vai puxar a carteira do bolso, percebe o ônibus:


ATRASADO      É este! É este aí! Meu, meu! Agora sim eu vou!


                        E em questão de segundos, o ônibus parte, levando o sujeito atrasado, e a cocada, e, deixando o nosso amigo vendedor novamente irritado, além de desanimado.
MÃE                 Meu Deus! Você viu só?
PAI                   É... As pessoas têm muita pressa hoje em dia. E muitas vezes, são inconsequentes por causa disso.
MÃE                 Saiu igualzinho como chegou.
PAI                   É louco. Lá no clube não tem disso não; tudo lá é tranqüilo. Claro que tem a bagunça da criançada, mas além de normal é até divertido...
MÃE                 Claro, deve ser bonito.


                        O vendedor, não vendo mais alternativa, toma a atitude: desesperado, aproxima-se dos dois casais e, ajoelhado, implora:


VENDEDOR     Pelo Amor de Deus! Comprem minhas cocadinhas. Minhas perfeitas, deliciosas e quentinhas cocadinhas caseiras!


PAI                   Vocês querem cocadas, crianças?
CRIANÇAS       (Sinalizando “não” com a cabeça) An-an.
PAI                   Marlene?
MÃE                 (Vingativa) Não, muito obrigada.
PAI                   Bom, eu também não quero. Muito obrigado, amigo, mas não queremos.
MENINO          Olha lá, mãe! outro ônibus!
PAI                   Ah, agora sim é o nosso...
CRIANÇAS       Êba! Vamos brincar no clube!


                        Dado o sinal, o ônibus pára; eles entram. Por último, Leonardo, que fala ao vendedor:


PAI                   Boa sorte, amigo. Espero que volte sem nenhuma cocada pra casa. Bom fim de semana (o ônibus parte, deixando o que sobrou do nosso amigo, o vendedor).

VENDEDOR     Não senhor. Não voltarei com nenhuma cocadinha. Nenhumazinha sequer (morde uma cocada)! Droga! Nenhumazinha mesmo pra contar a história (morde outra)! Ah, droga!(Morde outra, outra, outra e mais outra, e outra, e outra...) Droga! Droga, droga (...)!

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