domingo, 15 de maio de 2011

NA REALIDADE DA FICÇÃO CAP.II

II
O QUE É A VIDA?
 

ILUMINADO APENAS pela luz interna do seu “três em um”, mostrada no pequeno visor de acrílico do aparelho, ele estava deitado no sofá, enrolado dos pés à cabeça. Seus olhos fechados pouco fazia diferença no escuro do quarto. O som que lhe invadia era apenas o do rádio.
        Com o pensamento concentrado na figura daquela que amava, a voz do locutor não fazia efeito, assim como as propagandas dos patrocinadores. Apenas lembrava que havia ligado o rádio por não ouvir o silêncio em meio aos sons confusos que a emissora levava ao ar. Costumava fazer aquilo: deitava-se, se enrolava todo e ligava o rádio, ou levava um disco ao aparelho. Algumas músicas lhe faziam esquecer de sua fase vegetal, convidando-o a viagens mentais. E eram raras as vezes em que se deitava sem embarcar numa delas, fosse nova ou repetida.
        Ao ouvir o locutor anunciar uma de suas canções preferidas, emocionou-se por saber que uma nova viagem teria início. Sim, ali era seu reino, ali ele era quem sempre quisera ser. Assim, em questão de segundos transportou-se para um outro dia, outro tempo, outro cenário, outra situação. Algo que talvez não lhe transformasse a vida, mas a temperaria, ainda que por breves instantes.

        O teatro aparentemente era o mesmo que ele pisara durante anos, onde a conhecera. Mas o espaço parecia bem maior, e estava completamente lotado. O público, inquieto, pedia show. O homem de terno e gravata entrou com um microfone em mãos e anunciou a próxima atração. O nosso personagem, o escritor – ali um músico –, entrou com o seu violão elétrico. Após breve apresentação, o dândi que o chamara, se retirou. O escritor sentou-se num pequeno banco e posicionou o microfone à altura de sua boca. Silêncio total. Na intenção de testar o microfone, arranhou levemente a garganta. Dedicou um olhar atento àquela plateia que o desconhecia, concentrou-se (ou tentou), inspirou o ar e, sutilmente, anunciou a canção, com certa timidez na voz:
        - O que é a vida.

        Nenhuma reação do público. Silêncio. Espera.
        Ouviu-se a primeira nota, quando os seus dedos, ágeis e motivados, iniciaram um dedilhado perfeito, suave e ao mesmo tempo preciso. Como pedia a canção que, tranqüilo, começou a cantar.

                        O que é a vida pra quem quer entender?
                        O que é a vida pra quem deixa correr?
                        Como vê a vida quem tem pra oferecer?
                        Como é a vida pra quem não pode ver?
                                      
                        Na sombra ou no sol
                        Dos insatisfeitos
                        Nas trevas ou na luz dos imperfeitos
                        O que é a vida?

        Cumpridos os primeiros acordes, ouviu-se aplausos voluntários da plateia, aprovando a sua apresentação até ali, o que lhe serviu de entusiasmo e o cobriu de segurança. Seus dedos deslizavam ágeis nas cordas do instrumento, enquanto seu olhar os acompanhava, mais por postura que por medo de errar a nota. A voz então lhe saiu com mais entonação:


                        Como é a vida vivendo por viver?
                        Como é a vida vivendo pra valer?
                        Com regras e conceitos, adotando preceitos
                        Esporte e aventura, fazendo rupturas...?

                        São canções que a gente não ouve
                        Histórias que a gente não lê.
                        Sinais que não se percebe
                        Mas que percebe que não se vê.

                       
         O ritmo da canção era então acompanhado pelas palmas do auditório, que ele podia já considerar conquistado. Toda a atenção era sua. Os olhos vidravam naquela figura desconhecida, simples, mas segura, e de um talento capaz de lhes cobrar concentração e, digno de atenções posteriores.
        Estava então se libertando mais à emoção, à letra, à interpretação da canção. Uma olhada rápida para a platéia lhe certificou que estava indo bem. Percebeu também que, além do apresentador, os assistentes de palco e outros artistas também o admiravam naqueles minutos de ouro, poucos, mas preciosos. Mas preciosos mesmo ficaram quando ele notou, ali na plateia, aquela que deveria ser mesmo a mulher de sua vida. Ela estava ali, entre amigas, assistindo a sua apresentação. Ao notar que ele a vira, sorriu. E seu sorriso deu ao músico o que ele precisava para continuar a música, então mais emocionado.
        O dedão força propositadamente a corda superior do violão, trocando o dedilhado por uma batida leve, porém ágil, de acordo com a elevação da interpretação de sua voz emocionada. Todo ele era emoção: a voz, os olhos carregados, a boca trêmula, os braços, enfim, os dedos velozes que conduziam as notas no instrumento.


                        O que é a vida que passa na tv?
                        Como é a vida pra mim ou pra você?
                        Qual é a vida que vem a nós se oferecer,
Que vida é essa, a minha, sem você?
                                      

        Ao cantar a última frase, a emoção o venceu, enfim. Uma lágrima caiu ao olhar o rosto da sua amada que, no mesmo instante, entendeu a mensagem. Emocionada, ela fechou os olhos, sem notar a pressão que seu pretendente infligiu ao instrumento, ao substituir as batidas (que já eram fortes) por um dedilhado novo, algo brusco, com batidas nas trocas de notas, continuando a estrofe:


                        São canções que a gente não ouve
                        Histórias que a gente não lê.
                        Sinais que não se percebe
                        Mas que percebe que não se vê.
                        (O que é a vida?)


        Num leve arranhar de cordas, quase sem som, o violão chorou lento, seguido pela voz, também passiva, na estrofe seguinte:


                        No quarto sozinho,
                        Ao som do silêncio...
                        Em meio às multidões,
                        No jogo das impressões.
                        No sexto sentido
                        Na quinta categoria...

                        O que é a vida?


        As batidas voltaram leves, porém aceleradas. E seu descontrole, conforme ele mesmo esperava, permitiu que algumas lágrimas lhe banhassem o rosto e confundissem sua voz, que mesmo assim, seguia sem soluços. A sua amada, emocionada, o observava. E foi notando que as lágrimas dela também surgiam, que ele interpretou a última estrofe:


                        Como é a vida quando se acredita?
                        O que ela é quando se duvida?
                        O que é a vida se já crer escrita
                        Como pode ser, se ainda página limpa?

                        São canções que a gente compõe,
                        Histórias que a gente escreve...


        O público delirou quando ele parou o violão e fechou os olhos, com expressão de quem realmente vivia uma crise existencial e, largou a última frase da música, quase como um pedido de ajuda em batidas com intervalos silenciosos:


                        O que é a vi...da?


        Aplausos entusiasmados foram ouvidos. Assovios, gritos eufóricos de bis, calor da plateia. Alguém tentava sair dali, de sua poltrona, quase em desespero procurava subir. Enfim, conseguiu. Parada rápida. Estavam então, frente a frente; ela, vinda da platéia, ele, aguardando-a no palco. Por questão de segundos, olharam-se e fizeram uso direto do discurso do silêncio. Porém, abraçaram-se, confundindo seus soluços, a respiração e os batimentos cardíacos. Os aplausos seguiram então torcedores, ou, quem sabe, crentes de que se tratava de um casal de namorados. “Beija” era o grito que se ouvia então da platéia. O pedido que faziam e que, certamente seria atendido, caso não fosse o locutor anunciando a música que acabara de tocar na rádio, trazendo-o de volta aquele outro mundo; seu velho e “real” mundo.

        Levantou-se, desligou o som e ascendeu a luz. Por que existiam os locutores de rádio? perguntou-se.

        Terminada a viagem, pôs-se a pensar nela. Sempre que “saía” dali sentia-se muito bem; uma emoção boa que o sustentava e dava-lhe uma sensação de felicidade. Por outro lado, sempre que retornava ao seu mundo “real”, tudo era convertido em absoluta tristeza e não realidade da ficção que ele criava. A pergunta – ao final de cada viagem – era sempre uma variação sobre o mesmo tema daquela curtição, daquela utópica nostalgia que a vida lhe re(a)presentava em seus poucos momentos de glória.
        O que era a vida? Foi a questão foco da retrospectiva daqueles últimos instantes, daquela última viagem. O que lhe era, no momento mágico em que se abraçava com ela, entre lágrimas...? E o que lhe era, quando lhe mostrava que tudo era ilusão? Não. Se recusava a crer que era o mesmo valor em ambas as situações. Teria a vida o mesmo valor para um sábio e um ignorante?  Um pobre e um rico? Um herói e um bandido? Um forte e um fraco? Teria o mesmo valor para alguém que, em plena euforia, gozava dos mais diversos prazeres de viver e, para aqueles que sofriam a angústia de ver a vida desabar diante de si? Seria, então, para ambos, o mesmo valor?

        A canção tinha razão... “histórias que a gente não lê... canções que a gente não ouve...”, ou quando damos conta, geralmente é em nosso pior momento. Sim, como estava ele, ali. Quando podia vê-la, quando podia lhe falar, admirando o seu sorriso, não se perguntava se a vida valia ou não a pena. Estranho ele próprio sentia-se ao reconhecer que tinha tal consciência e, ainda assim, não lhe interessava descobrir mais nada. Nada! Era, ali, só ele, personagem único de sua vida, de sua história... de seu mundo.